Néctares de Baco (2) – Os fundamentalistas

Depois de um longínquo e isolado artigo sobre uma das nossas paixões na área do lazer, o vinho (ver Néctares de Baco (1) – O preço é só um começo), voltamos agora a este tema aliciante, para vos falar de alguns chavões que por vezes se vão ouvindo por aí.
Ponto assente: eu costumo dizer que as minhas opiniões só me vinculam a mim próprio. Não as tomo como verdades absolutas (não me levo tão a sério a esse ponto), reflectem apenas a minha verdade, os meus gostos, o meu modo de ver o que me rodeia. No caso concreto deste assunto, no entanto, o que aqui fica escrito reflecte a linha geral de pensamento dos autores deste blog.
Outro ponto assente: gostos não se discutem, e cada um faz as suas escolhas segundo os seus próprios parâmetros de avaliação e o seu grau de exigência.
Na compra de um bem, artigo ou serviço, o que é mais importante para mim, ou o factor que eu mais valorizo, é aquilo que vai determinar a minha decisão, e pode ser completamente diferente da pessoa que chega imediatamente antes ou depois de mim. Daí também vai depender o montante que cada um está disposto a gastar na aquisição do bem em causa. Se eu vou jantar a um restaurante com um serviço esmerado, uma ementa variada, uma carta de vinhos extensíssima e empregados de mesa de fato e lacinho, tenho um grau de exigência elevado e estou disposto a pagar por isso. Mas se entrar no McDonald’s ou na Pizza Hut não espero pagar muito por isso.
Vem isto a propósito de uma conversa sobre vinhos que tive no passado sábado, ao jantar com uns amigos. Nisto dos vinhos os critérios são ainda mais subjectivos, porque os parâmetros de avaliação têm sobretudo a ver com uma questão de gosto pessoal. Não é como nos computadores, em que tudo é mensurável em números e nós sabemos o que implica determinada velocidade do processador, capacidade de memória, espaço em disco ou memória da placa gráfica. Mas quando se abre uma garrafa de vinho, para além de não se saber exactamente o que vai sair de lá, a apreciação é individual e ainda por cima condicionada por inúmeros factores externos ao próprio vinho (temperatura do local e do vinho, comida, copos, até a companhia).
Na conversa em causa, um dos convivas citava uma opinião que tinha ouvido (ele já não se lembrava bem de quem, mas era de alguém supostamente bem informado dentro do ramo) acerca dos vinhos alentejanos. A citada opinião referia que “dificilmente o Alentejo poderá ter vinhos verdadeiramente bons, porque lhe falta uma coisa essencial: o solo de xisto”.
Logo à partida esta opinião parte duma premissa falsa. Não há nada escrito em lugar nenhum que diga que os solos onde se cultiva a vinha têm que ser de xisto. Mas o que é curioso é que a afirmação contém em si mesma várias falsidades. Ora vejamos:
1º - O tipo de solo é um dos factores mais variáveis. Existem solos de xisto, basalto, granito, argila (caso da Bairrada), areia (caso de Colares), e todos podem produzir bons vinhos.
2º - Não é sequer verdade que o solo seja o factor mais determinante na qualidade do vinho. Pode moldar as suas características, mas mais importante do que este há outros: o clima e, acima de todos, obviamente, a uva. Portanto, antes de mais nada, a natureza é que manda e qualquer um destes factores da natureza tem mais peso no resultado final do que as características do solo.
3º - Também não é verdade que não haja xisto no Alentejo e isso demonstra-se da forma mais simples possível: com o nome dum vinho do Redondo, produzido pela Roquevale, chamado precisamente “Terras de xisto”. Curiosamente, não me lembro de mais nenhum vinho em que a própria marca faça referência ao xisto.
4º - Depois não se esqueçam que não basta cultivar as uvas. É preciso fazer o vinho e aqui entra o enólogo, para além da tecnologia de que a empresa produtora dispõe. E o papel do enólogo tem cada vez mais importância na definição do estilo de vinho que se quer colocar no mercado.
Mas aquela afirmação ainda poderia ser comentada de outro modo. Ainda no mesmo fim-de-semana, almocei também com um amigo no domingo e abrimos uma garrafa de ½ litro de Touriga Nacional da Herdade do Esporão, de 2000. Contei-lhe a conversa anterior e comentei assim: “quem diz aquilo de certeza que nunca bebeu este vinho”.
De facto, só quem nunca provou algumas preciosidades que há por aí é que pode fazer uma afirmação gratuita como aquela. Experimentem comprar o Garrafeira dos Sócios, da Cooperativa de Reguengos de Monsaraz (CARMIM), o Reserva Sogrape, um dos vinhos monocasta da Herdade do Esporão (Aragonês, Trincadeira, Bastardo, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional, Syrah) ou até mesmo o Quatro castas (preços entre os 10 e 15 €); ou, se não quiserem gastar tanto, experimentem o Reguengos Reserva, o Roquevale de rótulo preto, ou os monocasta da CARMIM ou do João Portugal Ramos (entre os 5 e os 10 €). A seguir venham-me dizer que não prestam, ou que há por aí muito melhor!
Claro que há gostos e gostos. Não vou afirmar que os vinhos do Alentejo são os melhores do mundo ou do país, apesar de serem os que tenho em maior quantidade na minha garrafeira (isso é questão para mais tarde). Mas há bons vinhos em todas as regiões do país, e apreciá-los é não só uma questão de gosto, mas também de cultura e de educar o paladar e o olfacto para se conseguir captar toda a gama de aromas e sabores tão diferenciados que os nossos vinhos apresentam. E olhem que vale a pena.
O que é preciso é não sermos fundamentalistas, porque neste como em muitos outros aspectos o fundamentalismo limita-nos o raciocínio e estreita-nos a vista (neste caso será mais o olfacto e o paladar). No caso dos vinhos, é demasiadamente redutor dizer-se que “os desta região é que são bons”, “os daquela região não prestam” ou “estes são os melhores”. Assim como aquela frase que diz “vinho é tinto, branco é refresco e verde é a cor da garrafa”. Será?
Como o post já vai longo, voltaremos a este tema nos próximos dias.
 
Kroniketas, sempre kontra as tretas e as ideias fêtas

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