Que mal tem dar-te um tiro nas fuças?



Calma, caro leitor*, não me transformei num louco homicida de um momento para o outro! Não sou homicida! Lembrei-me deste título-choque, “a la” Independente de outros tempos , para falar sobre uma coisa que todos os homens mais ou menos da minha geração fizeram: brincar aos cowboys!**
Não, tirem essas imagens cowboycidas do Brokeback Mountain das vossas mentes, não é nada disso! Esqueçam essa treta – imaginem que o filme foi feito com homens do lixo em vez de cowboys. Pronto, já o fizeram? Então continuemos.
Brincar aos cowboys e aos índios implicava uma série de coisas horrendas para os “eduqueses” das últimas duas décadas: para começar, andávamos com armas; para continuar, não eram para auto-defesa e sim para matar os outros, fossem eles bandidos (equiparados a índios em termos de destino) ou índios (sempre os maus da fita); por outro lado, implicava uma boa dose de sujidade, germes sortidos e outras ameaças mortais; para mais, não era raro ficarmos esmurrados ou andarmos mesmo à batatada uns com os outros (muito vulgar quando alguma vítima não queria morrer sem protesto).
Portanto, se olharmos para isto tudo, há, pelo menos: brincadeiras com armas que potencialmente nos poderiam levar a uma vida de crime (ou a polícias, mas pronto); banalização da morte, com implicações extremas na percepção da vida por parte dos meninos; racismo e deturpação da história no posicionamento dos índios; possibilidade de acidentes mortais e infecções devastadoras.
Pois bem, contrariamente às expectativas, nem eu nem os meus companheiros de brincadeiras nos tornámos: maníacos das armas ou criminosos; cabrões insensíveis; não nos alistámos na frente nacional nem batemos em negros; não sofremos infecções fatais e as cicatrizes nos joelhos que ganhámos na altura até dão um certo charme. E, pelo menos da minha parte, mesmo nessa altura, nunca tomei a nuvem por Juno ou confundi brincadeira com realidade.
Vem tudo isto a propósito das redomas em que actualmente vivem as crianças e que, essas sim, as deixam perturbadas, e da saga do politicamente correcto que não deixa um honesto infante divertir-se a valer com um seis balas de fulminantes!
Nesse grupo fluido de colegas de escola e de brincadeiras alguns ficaram pelo caminho. Uns por doença, outros apanhados pela droga, outros por azares da vida, mas nada disso teve a ver com os tiros nas fuças que demos uns aos outros. E esses azarados foram poucos – a maioria está bem na vida e não ficou com os valores trocados por os índios perderem sempre ou por terem morto centenas de adversários em brincadeiras de tardes intermináveis. É triste não se verem crianças a brincar na rua nem se ouvir o tradicional “pum, pum, estás morto!” – acho que as gerações mais novas pensam que “ar livre” é o contrário de “ar condicionado”. Só.

tuguinho, cínico e ex-cowboy

*utilização do masculino como generalização; não quero que as caras leitoras se sintam esquecidas, mas andar a encher o texto de “caras(os)” e etc. não fica bem…
**ok, cara leitora, eu sei que afinal também brincava aos cowboys e isso; só que essas coisas levar-nos-iam muito longe, como por exemplo por que é que o seu namorado se chama Alfreda…

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