O país dos coitadinhos (II)
Calimero:
“It’s an injustice, it is!”
John Fitzgerald Kennedy:
“Don't ask what your country can do for you, but what you can do for your country.”
Lei de Murphy:
“Se algo pode correr mal, correrá mal.”
Lei da Política de Wilson:
“Se quiser fazer inimigos, tente alterar alguma coisa.”
A lei supracitada aplica-se na perfeição ao estado actual do nosso país. Em três décadas de democracia, pela primeira vez alguém teve o arrojo (não sei se lhe deveria chamar coragem ou loucura) de tentar mexer com interesses corporativos e direitos adquiridos cujos beneficiários os tinham como garantidos “ad aeternum”.
Ao tentar acabar com o imobilismo e a irresponsabilidade reinante em muitos sectores, o resultado destas tentativas (umas mais ou menos justificadas, outras nem tanto, mas quase todas mal sucedidas e todas, sem excepção, mal aceites pelos visados) foi um acirrar de ânimos e uma onda crescente de contestação e protestos. Mas será que com razão?
Como cidadão utilizador de serviços públicos, a avaliação que faço dos mesmos é a sua eficiência, e esta é dada pelos funcionários que lá estão a dar a cara e a resolver os problemas aos utentes. Só que às vezes eles não estão lá para resolver coisa nenhuma: estão lá para complicar ou para arranjar ainda mais problemas. No último número do Expresso, Clara Ferreira Alves relata a inenarrável odisseia de tentar obter um cartão de cidadão e resume tudo numa frase: “...excepto quando temos de tratar de um documento oficial e recorrer a essa espessa teia de burocracia e incompetência, desleixo e má-criação que se chama Administração Pública”.
Quando peço uma declaração à Segurança Social na Loja do Cidadão e me dizem que a enviam para casa no prazo de um mês e, passados 2 meses, nem declaração nem notícias, em vez de ir lá outra vez (uma vez que me disseram que não precisava de ir lá buscá-la) telefono. Do outro lado aparece-me uma daquelas funcionárias tipo-robot que me responde com voz seca e repetidamente “não damos informações por telefone” e nem me deixa explicar que pretendo saber porque é que o raio da declaração não foi enviada. Depois de me irritar com a dita funcionária acabo a voltar à Loja do Cidadão onde a eficiência do sistema me manda para um edifício recôndito algures no Areeiro para obter a malfadada declaração que supostamente me deveria ter sido enviada para casa dois meses antes.
Quando vou ao centro de saúde a uma urgência médica com o meu filho ao fim da tarde e mais de uma hora antes do fecho das consultas a médica de serviço olha para a sala e desaparece durante 45 minutos, vou ao guichet e pergunto o que se passa. Dizem-me que “a sotôra foi comer porque está grávida”. Portanto a “sotôra”, que iria sair de serviço daí a uma hora e, como a gravidez não é uma doença, podia ir tranquilamente jantar em casa, em vez de comer uma sanduíche rápida e despachar o serviço para o qual é paga com o dinheiro do Estado, devido à gravidez deixa os seus doentes à espera durante 45 minutos e ninguém lhe pede responsabilidades.
Quando vou a um hospital fazer radiografias para depois levar a uma consulta, pago ambas no mesmo guichet e dias depois me aparece em casa a conta para pagar a radiografia que eu já paguei, fica clara a eficiência dos serviços administrativos.
Quando vejo dois polícias de trânsito, às 9 da manhã no centro de Lisboa, durante mais de um quarto de hora de volta de um carro que está com duas rodas em cima duma passadeira, enquanto a 50 metros dali um cruzamento está completamente entupido com carros parados em cima da zebra e eles nem para lá olham; quando os cruzamentos na Avenida da República ficam bloqueados ao fim da tarde, impedindo a passagem ao trânsito das transversais e obrigando os carros a autênticas gincanas para conseguir atravessar quando o semáforo já fechou e nem um polícia aparece ali a pôr ordem naquilo; quando vejo uma carrinha da polícia de Portimão abancar à sombra, em transgressão em frente à entrada de uma garagem na Praia da Rocha para multar os incautos turistas que estacionaram os carros com duas rodas no passeio porque não têm outro sítio onde deixá-los para poder ir dar uns mergulhos na praia; fico ciente da inutilidade da polícia de trânsito cujo único objectivo de existência parece ser a caça à multa. Inúteis e parasitas.
Quando vejo um juiz decretar que a ponte de Entre-os-Rios caiu devido a causas naturais, como se fosse natural uma ponte cair, e quando vejo milhares de processos prescreverem por incúria, incapacidade ou incompetência, sei lá eu, dos senhores juízes e ninguém lhes pede responsabilidades pelas asneiras que cometem, fica claro que, para além de aplicarem (mal) a lei e sobretudo porem os criminosos cá fora, eles próprios estão acima da lei, na sua torre de marfim, e sentem-se intocáveis.
Quando sou multado pelas Finanças em mais de 200 euros por causa de um engano em 20 euros, ainda por cima com um auto levantado por um muito zeloso funcionário já depois de eu ter regularizado a situação, e ainda me ameaçam com uma penhora da casa; e quando depois de pagar a multa peço uma certidão de ausência de dívidas e me dizem que não ma podem passar porque ao pagar a multa o sistema se esqueceu de incluir o imposto de selo (!!!) dá-me vontade de lhes chamar gatunos e mandá-los todos à merda!
Estes são apenas alguns exemplos entre muitos que poderia citar acerca da função pública. “Pronto, aqui está mais um a atacar a função pública”, já deve estar alguém a dizer. Convém desde já esclarecer que sou casado com uma funcionária pública, que me conta casos de pessoas que não fazem nada durante todo o dia, anos a fio, que ela vai ter de avaliar e aos quais está com medo de dar menos de “bom”, porque pode acabar a responder em tribunal. Disse-me também que, pelo que vê à sua volta, já começa a perceber a razão das quotas na atribuição das classificações. Nada como saber das coisas contadas por quem as vive por dentro...
Tenho oportunidade de contactar frequentemente com técnicos superiores da função pública e francamente já me cansa a interminável ladainha dos coitadinhos dos funcionários públicos que estão a ser vítimas duma campanha do governo. Os médicos também se acham vítimas duma campanha do governo porque este quer que cumpram horários nos hospitais e tenham cartão de ponto, mas quando deixam os doentes horas intermináveis à espera das consultas ou deixam morrer doentes por incúria já não há problema, porque nunca lhes acontece nada. E depois o bastonário ainda tem o desplante de vir para a rádio dizer que há uma campanha contra os médicos! Os juízes acham-se vítimas duma campanha do governo porque este quer reduzir as férias judiciais, mas quando deixam prescrever dezenas de processos já não há problema, porque também nunca lhes acontece nada. E assim sucessivamente. Um verdadeiro país de Calimeros, este! Os Contemporâneos fizeram alguns sketches que retratam bem este estado do país, com uma frase do Chato: “coitadinho de mim”.
É o país onde ninguém quer ser responsável nem responsabilizado pelo que (não) faz, e se lhe pedem responsabilidades acha-se vítima duma campanha do governo. É o país onde há pessoas de 40 e poucos anos cuja maior ambição e objectivo de vida é reformarem-se e que fazem grave porque daqui a 20 anos vão ter que trabalhar mais 5 do que esperavam (grandes objectivos de vida de quem tem o ordenado garantido todos os meses e não tem falta de comida na mesa); que acham que, qualquer que seja o seu desempenho têm o direito, adquirido por decreto, de subir, subir, subir eternamente até ao topo da carreira sem terem de o justificar.
É o país onde os magníficos empresários que temos acham que as suas empresas só conseguem ser competitivas se pagarem salários de miséria aos funcionários e só conseguem sobreviver se fugirem ao fisco e não pagarem à segurança social, e onde o homem mais rico despede trabalhadores, apesar de ter lucro, só para prevenir uma crise que possa vir aí. É o país onde os agricultores só conseguem trabalhar à custa de subsídios do Estado e onde pedem subsídio de calamidade para as inundações quando chove e subsídio de calamidade para a seca quando não chove, como se a chuva e a seca não fizessem parte do risco do negócio; e onde em vez de cultivarem as terras para delas retirar o seu produto (longe vão os tempos da “terra a quem a trabalha”) preferem ficar a gozar os subsídios para não fazer nada ou vendê-las aos espanhóis para estes virem cá plantar olivais e comprar porcos pretos que levam para Espanha e depois vêm vender como produto seu.
E, “last but not least”, temos a interminável luta dos professores. Dois anos depois do post citado pelo tuguinho, cujo texto causou enorme irritação nas hostes (já se esperava, o contrário é que seria surpreendente) o que temos agora é mais do mesmo. Sabemos agora que as cedências do ministério foram apenas “cedências à força manifestada por uma classe”, “que está disposta a fazer greve por tempo indeterminado, e aí se verá o que dói”. De cedência em cedência até à cedência total, será esse o objectivo? E não será difícil saber o que dói: há-de doer, sobretudo, nos prejuízos causados à aprendizagem dos alunos e aos pais que não sabem se os filhos estão em aulas na escola, se estão na rua, em casa ou num ATL. E esses milhares também têm, seguramente, direito à sua opinião.
Neste blog sempre demos aos leitores o direito ao contraditório. O mesmo não aconteceu com um comentário nosso que foi apagado noutro blog, curiosamente (ou talvez não...) por uma professora. Falar-se em direito ao contraditório quando não se dá esse direito a terceiros e se ataca o carácter daqueles que o exercem é, no mínimo, uma piada. Tal como é uma piada questionar-se o direito à opinião num blog sobre este ou outro assunto qualquer. Parece que o único direito dos 9.850.000 portugueses que não são professores é limitar-se a ouvir as queixas e não abrir a boca...
Ninguém aqui falou em educação, embora se pudesse questionar que qualidade de educador terá um professor que, nas aulas de TIC, mostra filmes pirateados antes de estes saírem para o mercado... Que excelente exemplo para os seus alunos!
Também ninguém defendeu o Emídio Rangel ou o Miguel Sousa Tavares, que certamente se sabem defender a si próprios se precisarem. Tanto quanto sabemos, o que temos em comum com o Emídio Rangel é o facto de sermos benfiquistas. Com o MST talvez tenhamos ainda menos. Sabemos que é um portista ferrenho e empedernido e um fumador inveterado. Mas, se entendêssemos defendê-los ou corroborar as suas opiniões, esse seria um direito que nos assiste. O direito à greve é tão legítimo em democracia como o direito à liberdade de opinião, nomeadamente dos que são afectados pelas greves por tempo indeterminado (sejam elas de professores, camionistas, enfermeiros, motoristas da CP, da Carris ou do Metro, ou funcionários de recolha do lixo), ou como o direito de concordar com outras opiniões discordantes, sem que isso se traduza automaticamente numa classificação de mau carácter. E menos se pode contestar o direito de opinião quando há um país inteiro que é constantemente bombardeado, na Internet e nos meios de comunicação social, com a luta duma classe.
Ninguém aqui defendeu o Miguel Sousa Tavares, mas vou eu agora fazê-lo. Nem sempre acho que ele tenha razão e sei que ele é um bocado convencido naquilo que diz. Mas também sei que sempre tem manifestado a sua opinião sem estar dependente ou ao serviço de lóbis ou interesses obscuros e tem dado a cara em defesa de causas que ele considera justas, nomeadamente em prol da cidade de Lisboa, ele que é portista e portuense de nascimento. Foi dos primeiros a falar contra o projecto megalómano de arranha-céus na “Manhattan de Alcântara”, contra as arbitrariedades e ânsia edificadora da Administração do Porto de Lisboa, contra o fecho do Terreiro do Paço aos domingos, contra as paredes à beira-Tejo com o hotel para paquetes em Santa Apolónia e o terminal de contentores de Alcântara (ao contrário do vereador José Sá Fernandes, que oportunistamente se colou ao poder), o que aliás lhe valeu ser ameaçado fisicamente por trabalhadores da zona (pois é, foi mexer com interesses instalados), contra o embuste que parecia ser o aeroporto da Ota, contra o desastre financeiro que parece vir a ser o TGV, contra a utilização completamente desvirtuada da barragem do Alqueva (que em vez do regadio vai servir para regar campos de golfe e hotéis de charme, como ele previu muito tempo antes da construção), contra os atentados urbanísticos que se preparam às zonas de paisagem protegida na ria de Alvor e na costa vicentina através de mais projectos de construção desenfreada. Que eu saiba, nenhum benefício pessoal lhe advém destas lutas que ele faz com a voz e a escrita. E é este o mesmo homem que agora é alvo, ele sim, de uma campanha, porque nos espaços de opinião ousou afrontar os professores.
Quando se ataca em termos de carácter quem opina em sentido contrário; quando se lançam campanhas na Internet contra a compra de livros do Miguel Sousa Tavares por causa duma frase que ele nega ter dito (e a técnica de usar frases retiradas do contexto para se fazer um aproveitamento oportunista a nosso favor é por demais conhecida), porque é fanfarrão, faz caçadas no Alentejo e raides todo-o-terreno; quando se mistura uma opinião de carácter político-social com o que os seus autores fazem na sua vida privada; quando se quer catalogar como pessoa mal formada quem possa concordar com a opinião de alguém que não nos agrada, perdeu-se a noção da realidade porque se ultrapassou a fronteira da discussão racional e se entrou numa espécie de delírio persecutório. Assanhamento, se existe, é de quem vê, ao contrário do que cantava o Zeca Afonso, em cada esquina um inimigo. Já não é discussão nem opinião, é doença colectiva.
E depois, passados dois anos o que temos é mais do mesmo. E mais do mesmo a certa altura cansa. Já ouvi um professor dizer que já não tem paciência, ele próprio, para ouvir as conversas de professores. Quando se entra no exagero o protesto começa a não ter impacto, antes começa a fartar, principalmente quando todos os dias as manchetes e as notícias de abertura dos telejornais são sobre mais empresas que vão fechar, lançando centenas ou milhares para o desemprego, criando às vezes situações dramáticas em famílias onde o marido e a mulher são despedidos ao mesmo tempo. Perante este tipo de problemas realmente graves, as lutas contra o controlo de assiduidade nos hospitais, a idade da reforma na função pública, as progressões nas carreiras, a redução das férias judiciais, o estatuto da carreira docente, os professores titulares ou a avaliação parecem-se mais com birras de crianças mimadas a quem tiraram o brinquedo... Estas e outras classes profissionais deviam, antes de mais, preocupar-se em cumprir bem a função para que são pagos com o dinheiro de todos os contribuintes antes de virem para a praça pública queixar-se de perseguição. E lembrar-se que há quem não tenha trabalho, quem tenha salários em atraso, quem trabalhe a recibo verde ou sem contrato anos a fio, que recebe quando calha, sem férias pagas nem sindicatos a defendê-los e a convocar greves todos os meses. Era bom que deixassem de olhar só para o seu umbigo, abrissem os olhos para o país que os rodeia e percebessem que há muita gente à sua volta com problemas muito maiores.
Kroniketas, sempre kontra as tretas e farto dos Calimeros
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